UMA NOVA CONSTITUIÇÃO: Justificativa


I. A Crise Constitucional Brasileira e a Busca por Soluções

Introdução
Entende-se que a atual crise brasileira, mais do econômica ou política, seja constitucional. Em qualquer comunidade política, segundo explica Eric Voegelin, há duas tensões principais: entre (1) a ordem existencial e a ordem concreta; e, dentro da ordem concreta, entre (2) a ordem social e a ordem institucional. A nossa crise seria devido à distância entre a ordem existencial [o que o Brasil é] e a ordem concreta [como o Brasil está] ter-se tornado insuportável. Com isso, a ordem institucional teria perdido legitimidade, causando instabilidade social. A ordem institucional não seria mais representativa. Haveria, pois, uma necessidade de rearranjo, mas um que contemplasse tanto a ordem social brasileira quanto nossa ordem existencial, sob pena de haver nova ruptura logo adiante – como tem ocorrido constantemente desde a proclamação da República.

Em Sérgio Buarque de Holanda e em Jorge Caldeira é possível perceber-se uma depressão causada pela constatação de que os problemas do Brasil hodiernos são os mesmos de antanho. O "presidencialismo parlamentar", o "presidencialismo de coalizão" de hoje, existia à época de Holanda e, da mesma forma, era o sistema político do Império. No século XIX, o apoio parlamentar ao gabinete também era comprado! Para enfrentar isso, não se pode apenas organizar de um jeito que o jogo politico siga igual a sempre. A tendência natural é acabar nisso. O Brasil precisa corrigir seu problema de representação. Nas palavras, totalmente fora de contexto, de Sérgio Buarque de Holanda: "... presentemente a revolução necessária seria uma contrarrevolução. Em outras palavras, um movimento tendente a restabelecer, nos devidos limites, a 'mentalidade própria para o soneto'." (Crítica e Poesia - 1940)

A tarefa do Constituinte é semelhante a escrever um soneto – respeitando a forma. Deve ser uma forma que permita "sermos brasileiros", sem promover o que o brasileiro tem de pior. Pelo contrário, a forma precisa tanto ser brasileira quanto permitir que nos tornemos "melhores brasileiros". Temos que buscar produzirmos bons e belos sonetos! Alguém certamente perguntará: “qual seria o parâmetro para um ‘bom e belo soneto político’?” Há, de fato, alguns como, por exemplo: (a) estabilidade social e institucional; (b) auto-aceitação histórica e política [fim do complexo de vira-lata]; (c) ausência de ansiedade teleológica [fim do "tem que dar certo"]; etc. Infelizmente, não há um "soneto político" definido que sirva para todos os casos. É preciso ser criativo para determiná-lo e desenvolvê-lo considerando cada caso em concreto. O desafio é estabelecer um arcabouço institucional que: (I) estimule a busca, na origem, no passado, dos fundamentos da comunidade política; (II) seja compatível com as estruturas de poder do presente; e (III) permita balizar a ação política de modo a, no mínimo, assegurar a estabilidade social futura. Noutras palavras, a pergunta fundamental é: como o Brasil pode estabelecer uma estabilidade política duradoura?

            I. Inspiração: o “1”, o “2”, e o “3”, no Reino Unido e nos Estados Unidos
   A inspiração do presente projeto é anglo-americana, pelo simples fato de que eles são os melhores exemplos de estabilidades políticas duradouras. O sucesso em ambos os casos deu-se pela combinação do reconhecimento tanto dos fundamentos daquelas comunidades políticas quanto do contexto contemporâneo em que estão inseridas. Em suma, o segredo estaria no constante diálogo entre as experiências do passado e os problemas do presente, preservando a possibilidade de respostas futuras. Porém, ao tomar a inspiração da Inglaterra e dos Estados Unidos é obrigatório reconhecer que a dinâmica em cada um são diferentes, como também são distintas as respostas. O Brasil, portanto, tem que achar o seu próprio jeito. Como viu-se, isso diria respeito tanto àquilo que o Brasil “é” quanto ao contexto no qual o Brasil vive e está inserido. Portanto, é preciso identificar a essência do Brasil [aquilo que faz do Brasil Brasil] e reconhecer o ambiente atual, interna e externamente.

Este projeto almeja, como se disse do “Virgina Plan”, projeto de James Madison para a Constiuição Americana, estabelecer "poderes tentando balancear, de um lado, permanências (tradição) e, de outro, mudanças (progresso)". Madison, por sua vez, estava apenas tentando adaptar à realidade americana da época, as instituições e práticas políticas britânicas. Grosso modo, no Reino Unido, os três estamentos representam lados distintos: monarca e lordes, o elo com o passado; e comuns, o foco no futuro. Nos EUA, onde há apenas “comuns”, o elo com o passado e o foco no futuro recai sobre todos, equanimemente. A responsabilidade de realizar tal balanço compete a cada um dos três "poderes" (Executivo, Legislativo, e Judiciário) e a cada um dos três “níveis” (União, Estados, e Sociedade Civil), isolada e conjuntamente. Em ambos os casos seria dever de todos, no presente, voltar-se ao passado ao focar no futuro. A experiência americana apenas deixa isso mais em evidência, mas os britânicos fazem o mesmo ao reunirem-se como um único “Reino” (“Realm”) no “Rei-no-Parlamento” (“King-in-Parliament”).

Note-se que símbolos teológicos se revelam na experiência política anglo-americana. Como Eric Voegelin e Carl Schmitt bem perceberam, as comunidades políticas têm sua própria teologia. Os casos mencionados mostram dois tipos de tensões: uma, entre dois pólos opostos de uma mesma unidade; e, outra, entre três “inteiros” de um mesmo “inteiro”. O primeiro seria equivalente às simbologias maniqueísta e taoísta, é representado pelo número “2”, e aparece, por exemplo, nas tensões entre: “governo e oposição”; “administração e sociedade civil”; “tradição e progresso”; “o que se é” e “como se está”; etc. O segundo seria equivalente à simbologia católica, é representado pelo número “3”, e aparece, por exemplo, nas tensões entre: “executivo, legislativo, e judiciário”; “monarca, lordes, e comuns”; “União, estados, e sociedade civil”; etc.


De comum a ambas essas tensões é a presença do número “1”, equivalente ao “cosmos”, ao “universo”, a “Deus”, etc., e que representa a totalidade da sociedade política. A presença do “1” ilumina as tensões como elementos constitutivos, naturais, do “Todo”; não podendo ser causa de sua extinção, mas, pelo contrário, estão presentes desde sua origem e são responsáveis por seu desenvolvimento. Noutras palavras, todo e qualquer “1” é sempre uma união de partes; “E Pluribus Unum”. Os britânicos descobriram sua unidade constitucional na reunião dos estamentos no “King-in-Parliament”. Por sua vez, os “Framers” constituíram uma unidade constitucional através do “We the People”; constituindo um “povo americano” que nunca existira antes, mas fundamental para que os Estados Unidos da América fosse possível.

II. Aplicação:
o “1”, o “2”, e o “3”, no Brasil
Os exemplos britânico e americano indicam a necessidade de encontrar-se, na experiência política brasileira, a forma como o “1”, o “2”, e o “3” manifestam-se concretamente. As instituições devem ser estabelecidas de forma a permitir a ocorrência das tensões binárias e ternárias e que essas resultem no fortalecimento da comunidade; não, no seu esfacelamento. Porém, no caso brasileiro, a tarefa é ainda mais complexa do que aquela encontrada pelos “Framers” da Constituição Americana. Nós padecemos de uma enfermidade inexistente nos Estados Unidos do século XVIII: perda de memória. O Brasil não necessita de uma nova Constituição, mas de uma RECONSTITUIÇÃO; isto é, precisa-se reencontrar os fundamentos da unidade constitucional brasileira – que já existe, mas se perdeu. Os brasileiros, infelizmente, só lembramo-nos, politicamente, do que passou a partir de abril de 1964. Faz-se necessário, portanto, criar também condições para que o exercício de recordação política seja estimulado. Todavia, a memória nunca volta de uma vez só, e jamais volta igual. O processo de recordação é também de reconstrução.


O desafio é árduo, pois entra no paradoxo “do ovo e da galinha”. Se os britânicos descobriram algo que já existia e funcionava, e os americanos constituíram algo fundamental, mas que não existia, nosso desafio está em descobrir algo que já existe, mas que não funciona. Nesse caso, o que fazer? Deve-se estabelecer instituições e esperar que sejam compatíveis com a constituição da sociedade brasileira, próximo ao experimento americano, ou deve-se deixar que a sociedade trabalhe as tensões de modo que algo como uma versão tupiniquim do “King-in-Parliament” surja naturalmente? O presente plano baseia-se na crença de que, no caso brasileiro, a primeira opção seria o único caminho para atingir-se o fim da segunda opção. Deve-se buscar na história brasileira elementos que permitam estabelecer instituições compatíveis com a essência da comunidade brasileira, ao mesmo tempo em que se deve dar-lhes flexibilidade suficiente para permitir-lhes serem compatíveis com as descobertas decorrentes da própria prática política. É necessário aceitar o mistério de que ovo e galinha surgiram ao mesmo tempo.

Imagina-se que o problema de fundo não seja muito diferente do que os Founders e os Framers enfrentaram na tentativa de adequar os Estados Unidos às exigências da Modernidade. No nosso caso, o desafio estaria em adequar o Brasil, social e institucionalmente: (a) dentro dos parâmetros exigidos pela pós-modernidade; e (b) de uma forma que os brasileiros se identifiquem na estrutura. Noutras palavras, o desafio é encontrar a forma brasileira de trilhar o Caminho que é Cristo sem mencionar Cristo. Nesse sentido, por exemplo, falar-se em "pós-verdade" é tão-somente reconhecer que a Verdade, em maiúscula, é silente. O diálogo entre Deus e os homens dá-se como retratado na parábola do "Grande Inquisidor", no livro "Irmãos Karamasov" de Dostoiévski: só os homens falam; Deus é mudo. Politicamente, isso significa que o Estado Cristão é laico, e o Estado Laico é cristão. Não há qualquer controvérsia ou polêmica nesse ponto.

Com isso em mente, este plano para uma nova Constituição para o Brasil busca fundamentar-se, primeiramente, no que identifica ser as tensões binárias primordiais da comunidade política brasileira, por exemplo e sem ordem específica:

-       Tradição e Progresso;
-       Ordem e Caos;
-       Hierarquia e Igualdade;
-       Centralização Unitária e Descentralização Federativa;
-       Administração e Sociedade Civil;
-       Ricos e Pobres;
-       Campo e Cidades;
-       Império e República;

Qualquer desenho constitucional que possa ser bem sucedido em estabelecer uma ordem política duradoura deve ser inspirado na história brasileira, e na nossa tradição, digamos, “anarco-absolutista”. As duas faces do Brasil devem, cada uma, representar lados opostos dessas tensões. Por um lado, é necessário respeitar nossa tradição imperial, burocrática, centralizadora, hierarquizada, séria, e racionalista; por outro, deve-se fazer o mesmo com nossa tradição republicana, anarquista, subversiva, festiva, e caótica. A questão é como usar a combinação de tais elementos em nosso favor.
 

Crê-se que tanto a história quanto o presente do Brasil – ou melhor, do Brazil, como o país voltaria a chamar-se – devam ser respeitados, de maneira que a Constituição brazileira se encontre no texto constitucional. Uma Constituição para o Império dos Estados e dos Povos do Brazil deve partir do reconhecimento e da aceitação daquilo que somos como nação e criativamente estabelecer instituições e normas que permitam aos brazileiros, a partir da interação social, desenvolverem uma comunidade estável e duradoura – à brazileira.

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